Ao conquistar a maior propriedade particular do planeta, Leopoldo II ganhou o controle sobre a comercialização de produtos valiosos como a borracha e o marfim.
Na farsa, o Rei comprometia-se a lutar contra a escravidão e incentivar o livre comércio na região. O que ele fez de fato foi invadir e confiscar aldeias inteiras de nativos, passando como um trator sobre os congoleses, utilizando a força de seus soldados da Força Pública e de mercenários que chegavam para reforçar as equipes.
Os líderes tribais eram obrigados a conceder escravos para o sistema. Nem era preciso usar de lábia ou persuasão: o sequestro de mulheres e crianças congolesas era muito mais eficiente. Em casos de revoltas, os soldados tinham permissão para abafar qualquer ato de resistência com assassinatos, estupros, amputações e toda sorte de barbaridades que pudesse colocar medo na população.
Com a riqueza acumulada durante a exploração, o rei patrocinou obras colossais como o palacete de Tervuren, em Bruxelas, e uma linha de bonde especial para comemorar o êxito da missão no Congo. Um detalhe: o monarca jamais chegou a pisar em sua propriedade privada.
Foi assim que, durante mais de 20 anos, Leopoldo II matou de 8 a 10 milhões de congoleses – quase metade da população do país na época. E, ainda assim, pouco ou nada ouvimos falar sobre ele na escola ou na mídia. E este não é um caso isolado. É comum que se deixe de lado acontecimentos trágicos em cantos como a África e o Oriente Médio, por exemplo. Especialmente se esses acontecimentos são causados por europeus ou norte-americanos. O que perdurou na historiografia de até meados do século XX é uma narrativa prioritariamente eurocêntrica, problema que persiste, em níveis um pouco menos acentuados, até hoje. A vida humana ganha peso diferente conforme sua cor, sua localização geográfica e sua cultura.
As atrocidades de Leopoldo II causaram tanto espanto em seus contemporâneos que ativista fundaram a Associação pela Reforma do Congo, que contou com o lobby de celebridades como os escritores Mark Twain e Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes. Twain, inclusive, satirizou o rei em Solilóquio do Rei Leopoldo; Uma Defesa de seu Mando no Congo (King Leopold’s Soliloquy; A Defense of His Congo Rule), em que ridiculariza os argumentos de Leopoldo para justificar seu regime de terror.
O Coração das Trevas, de Joseph Conrad (o livro em que o Apocalypse Now de Coppola foi livremente inspirado), foi assumidamente baseado nos territórios comandados por Leopoldo II, e descreve como o terror tomou conta do lugar com a invasão belga.
Depois de anos e anos de massacre, formou-se uma pressão internacional contra os abusos cometidos por Leopoldo II no “Estado Livre do Congo”. A situação se estendeu até 1908, quando o parlamento belga enfim resolveu intervir e tirar as terras das mãos do Rei, rebatizando o país de Congo Belga e reduzindo os atentados contra os direitos humanos. No ano seguinte, 1909, o monarca morreu, aos 74 anos de idade. Conta-se que populares se manifestaram com vaias em seu cortejo fúnebre.
Mais de cem anos depois, em 2010, o então rei belga Albert II participou das comemorações dos 50 anos da independência do Congo, sem, no entanto, qualquer pronunciamento público. Nem um mero “desculpem, erramos”. Talvez parte do mundo ainda prefira acreditar que Leopoldo II foi “um visionário que levou a civilização ao Congo”, como teve o arrojo de afirmar o ex-ministro das Relações Exteriores Louis Michel.
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